Dra. Maria de Mello*
A Tecnologia Assistiva é uma disciplina de domínio de engenheiros de reabilitação, de computação, biomédicos, elétricos, etc. ; médicos; arquitetos; desenhistas industriais; terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos trabalhando juntos para restaurar a função humana através do uso de ajudas técnicas. Mundialmente o terapeuta ocupacional tem sido o profissional eleito para coordenar o processo clínico interdisciplinar de avaliação das necessidades do usuário e de prescrição da ajuda técnica de forma a atender a demanda identificada . As competências profissionais na área de Tecnologia Assistiva no Brasil, estão se definindo à medida que a prática vai se consolidando.
Na área da educação, pedagogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais têm atuado na prescrição das ajudas técnicas, embora em vários municípios brasileiros a disponibilidade de ajudas técnicas nas escolas seja insuficiente e não atende a necessidade específica dos alunos com necessidades especiais. Em vários municípios as crianças não têm acesso a serviços de reabilitação antes da idade escolar, dessa forma, em muitos casos a necessidade de ajudas técnicas (e é claro, de intervenções reabilitadoras) só são percebidas quando a criança entra na escola. Percebe-se que há necessidade das escolas atuarem em conjunto com as equipes de reabilitação que atuam na região para promover a educação inclusiva. Na verdade, o ideal seria ter uma equipe de reabilitação, que também fosse especializada em tecnologia assistiva e educação, disponível para atender a rede escolar agindo de forma complementar as equipes de reabilitação que atuam na área da saúde. A intervenção reabilitadora tem que sair do modelo médico e migrar para o sócio-educacional.
O Serviço Único de Saúde - SUS e as entidades conveniadas a ele, tem sido o principal responsável pela concessão de órteses e próteses no país. Historicamente, o médico é o responsável pelas prescrições de órteses e próteses no SUS, embora se sabe que na prática, em muitos serviços de reabilitação, outros profissionais são os que realizam os procedimentos de avaliação das necessidades do cliente e elaboram a prescrição.
Recentemente, o artigo 2 da Resolução No 316 do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, de 19 de julho de 2006, e publicada em 3 de agosto de 2006, afirma que o terapeuta ocupacional é o profissional responsável pelo processo de prescrição de TA. O artigo será citado a seguir, visto a sua relevância na área de TA:
Artigo 2º - Compete ao terapeuta ocupacional o uso da Tecnologia Assistiva nas Atividades de Vida Diária (AVDs) e Atividades Instrumentais de Vida Diária (AIVDs) com os objetivos de:
II - criar equipamentos, adaptações de acesso ao computador e software;
III - utilizar sistemas de comunicação alternativa, de órteses, de próteses e de adaptações;
IV - promover adequações posturais para o desempenho ocupacional por meio de adaptações instrumentais;
V - realizar adaptações para déficits sensoriais (visuais, auditivos, táteis, dentre outros) e cognitivos em equipamentos e dispositivos para mobilidade funcional;
VI - adequar unidades computadorizadas de controle ambiental;
VII - promover adaptações estruturais em ambientes domésticos, laborais, em espaços públicos e de lazer;
"VIII - promover ajuste, acomodação e adequação do indivíduo a uma nova condição e melhoria na qualidade de vida ocupacional.”
Acredita-se que após a publicação dessa resolução, a rede de serviços provedoras de TA deverá ser re-organizada de forma a cumpri-la. Novas competências profissionais deverão surgir, medidas para remuneração de serviços também deverão ser alteradas, além de que o terapeuta ocupacional deverá fazer parte da equipe de concessão de órteses e próteses em todo o território nacional.
Bases Legais do Acesso a Tecnologia Assistiva
No Portal Nacional de Tecnologia Assistiva http://www.assistiva.org.br/, é possível ter acesso a toda a legislação pertinente ao uso de TA no país. Segundo o Decreto Nº 3.298, de 20/12/1999, que regulamenta a lei 7.853, de 24/10/1989, e dispõe sobre a Política Nacional para a integração da Pessoa Portadora de Deficiência, no capítulo VII, Art. 19. “Consideram-se ajudas técnicas, para os efeitos deste decreto, os elementos que permitem compensar uma ou mais limitações funcionais motoras, sensoriais ou mentais das pessoas portadoras de deficiências, com o objetivo de permitir-lhes superar as barreiras da comunicação e da mobilidade e de possibilitar sua plena inclusão social. São ajudas técnicas, incisos”:
II – órteses que favoreçam a adequação funcional.
III – equipamentos e elementos necessários á terapia e reabilitação da pessoa portadora de deficiência.
IV – equipamentos, maquinarias e utensílos de trabalho especialmente desenhados ou adaptados para uso por pessoa portadora de deficiência.
V – elementos de mobilidade, cuidado e higiene pessoal necessários para facilitar a autonomia e a segurança da pessoa portadora de deficiência.
VI – elementos especiais para facilitar a comunicação, informação e a sinalização para pessoa portadora de deficiência.
VII – equipamentos e material pedagógico especial para educação, capacitação e recreação da pessoa portadora de deficiência.
VIII – adaptações ambientais e outras que garantam o acesso, a melhoria funcional e a autonomia pessoal.
IX – bolsas coletoras para portadores de ostomia.
Vários instrumentos legais brasileiros (Decreto 3298, 20/12/99; Decreto 5296 2/12/04; Lei 10098 de 19/12/2000 entre outros) garantem o direito da pessoa com deficiência (e aí inclui o idoso com comprometimento da capacidade funcional), em ter acesso as ajudas técnicas, além do acesso a programas de reabilitação. Embora existam essas garantias legais, os serviços de saúde disponibilizados, tanto da rede pública quanto da saúde complementar, ainda não as cumprem de forma satisfatória.
Além disso, ainda não há nenhum instrumento legal que obrigue os planos e seguros privados de saúde disponibilizarem serviços de reabilitação envolvidos na prescrição e treino do uso das ajudas técnicas, e nem o equipamento/adaptação em si, deixando para o estado e o usuário o ônus de aquisição. Apesar dos instrumentos legais definir muito claramente o que são as ajudas técnicas, não há legislação suficiente para sustentar uma rede de serviços de tecnologia assistiva no país (BERSCH, 2006): “ a nossa legislação não fala em “Serviços” de “Ajudas Técnicas” e estes parecem estar subentendidos quando da garantia de atendimento de habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência”.
Problemas na Prática de Tecnologia Assistiva no Brasil
Embora seja evidente o beneficio que a utilização de ajudas técnica pode trazer as pessoas com deficiência e aos idosos, é decepcionante ver que a maioria dos cidadãos brasileiros que poderiam se beneficiar do uso de TA, não estão usufruindo desse beneficio. Há também discrepância entre os estados brasileiros em relação à oferta de produtos e serviços relacionados com TA. O Sudeste é a região onde se concentra o maior número de profissionais capacitados, de pontos comerciais que comercializam TA e também onde está o maior número de grupos de pesquisa envolvidos com o tema. A região Norte é a mais desprovida, apesar de contar com dois grupos de pesquisa na Universidade Estadual do Pará (o Núcleo de Desenvolvimento de Tecnologia Assistiva e Acessibilidade – NEDETA em fase de instalação, e o Laboratório de Tecnologia Assistiva da Universidade do Estado do Pará (LABTA-UEPA) com atividades voltadas para a produção de órteses a baixo custo), e um grupo de pesquisa em Manaus (Fundação Desembargador Paulo Feitoza, desenvolvimento de soft e hardware somente). LARANJEIRA E ALMEIDA (2006) encontraram que, em relação aos serviços de concessão de órteses e próteses do sistema SUS, as ajudas técnicas são mal distribuídas entre os estados brasileiros e, dentro de um mesmo estado, entre seus municípios, privilegiando as capitais, de forma que não há eqüidade na distribuição.
Em estudo recente, não publicado [DA1], realizado pela proponente e suas alunas da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Curso de Especialização em Tecnologia Assistiva realizado em Natal em parceria com o Laboratório de Acessibilidade Integrada da Universidade Federal do Rio Grande Norte, foi apontado que os serviços de concessão de órteses e próteses na Região Nordeste, apresentavam os seguintes problemas:
1. Lista de opções reduzida: as opções garantidas pelas portarias do Ministério da Saúde não representam a totalidade das necessidades dos usuários, ela apresenta um numero reduzido de itens e pouca (ou nenhuma) variação das especificações de um mesmo item.
2. Inespecifidade da prescrição: os profissionais, em sua grande maioria, responsáveis em avaliar a necessidade do usuário e fazer a prescrição, não dispõem do conhecimento necessário para fazê-lo da forma o mais apropriada possível segundo as evidencias cientificas já disponíveis. Há uma carência de profissionais especializados em TA no país.
3. Demora da entrega: devido a processos burocráticos, disponibilidade de recursos, pouca disponibilidade do produto no mercado, entre outros aspectos, em muitos casos o tempo entre a prescrição e a entrega da ajuda técnica ao usuário ultrapassa 90 dias, ha relatos de mais de 180 dias de espera. E possível que a demanda do usuário se altere ao longo do tempo (evolução ou involução funcional, às vezes até pelo não uso da TA) e quando a ajuda técnica for disponibilizada ela não esteja mais adequada à necessidade do usuário.
4. Inexistência de programa de treino de uso: em todos os serviços pesquisados o treino do uso consistia apenas na explicação do uso do equipamento no momento da entrega do mesmo. Não se constatou planos terapêuticos de treino de uso das ajudas técnicas nos ambientes terapêuticos e nem nos locais reais de uso (domicilio, comunidade, escola, local de trabalho, etc.)
5. Inexistência de programa sistemático de seguimento de uso: não há protocolos específicos para esse fim.
A utilização de TA no Brasil ainda é bastante limitada. Os principais fatores que contribuem para a pouca utilização desses recursos são [DA2] :
1- Insuficiência e sub-utilizaçãode recursos: Nos Estados Unidos e Suécia, as tecnologias assistivas representam cerca de 2,5 e 2,6% dos gastos totais com a saúde, respectivamente (RUSSEL et col, 1997, HASS, 1996) . Segundo estudo intitulado “Utilização de Órteses e Meios Auxiliares de Locomoção (MAL) no Sistema Único de Saúde” (LARANJEIRA E ALMEIDA , 2006) no Brasil, em 2002, foram dispensadas cerca de 89 mil órteses e MALs, que representaram para o SUS aproximadamente 25 milhões de reais, cerca de 0,08% do orçamento anual para a saúde do país (MS, 2005). Um dos principais achados desse estudo foi a sub-utilização de órteses e MALs pelos pacientes do Sistema Único de Saúde. Como evidência desta sub-utilização, tem-se que, das cerca de nove milhões de pessoas portadoras de deficiência física e motora no Brasil [2], apenas 0,99% recebeu alguma órtese ou MAL no ano de 2002, segundo dados de produção do SIA-SUS. Quanto ao cenário internacional, RUSSEL e colaboradores [8] apontam uma taxa de 46 órteses por 1000 deficientes nos Estados Unidos. Comparando-se este número com a taxa média nacional de 9,99 órteses por 1000 deficientes. Em acréscimo, tem-se que vinte estados rasileiros ficaram abaixo da taxa média nacional. Destes, seis apresentaram taxa menor que uma órtese por 1000 deficientes: Goiás, Piauí, Pará, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Tocantins . Um dos estados (Amapá) nem mesmo entrou no estudo por não ter dispensado órteses motoras ou MALs no período observado (LARANJEIRA E ALMEIDA , 2006).
O sistema público de saúde mantém financiamento de alguns produtos, como por exemplo, cadeiras de rodas, mas não inclui para esse mesmo cliente a possibilidade de aquisição de uma almofada especial, que previna o aparecimento de úlceras de pressão ou que lhe dê melhores condições pastorais, possibilitando-lhe um retorno mais rápido e seguro ao mercado de trabalho. Na verdade existe uma listagem de produtos que são financiados pelos órgãos públicos de saúde. Entretanto esta listagem é bastante limitada, não reflete a necessidade real dos indivíduos com comprometimento funcional e é desconhecida pelos próprios profissionais que trabalham na rede, além dos outros profissionais e usuários. LARANJEIRA E ALMEIDA (2006) identificaram os seguintes fatores como potenciais causas de sub-utilização do sistema de concessão de órteses e próteses do SUS : falta de formação profissional especializada, falta de conhecimento dos profissionais sobre as tecnologias assistivas que são dispensadas no SUS, difícil acesso às tecnologias no SUS, limitação da lista de órteses e MALs dispensados no SUS e preferência dos profissionais por produtos importados. No âmbito privado, as empresas mantenedoras de planos e seguros de saúde não preveem o financiamento de órteses e de tecnologia assistiva aos seus clientes, ao contrário do que acontece em países do dito primeiro mundo. Portanto, na maioria dos casos os usuários desses dispositivos no Brasil têm que financiar a si mesmos.
Essas dificuldades têm um efeito desanimador para a indústria brasileira nesse ramo, pois se acredita que se desenvolver produtos mais sofisticados não haverá recursos para sua aquisição, ou mesmo se produzirem uma gama maior dos mais simples, não há garantia de compra. Por outro lado, grandes produtores internacionais iniciam timidamente a conquista do mercado brasileiro. A utilização desses produtos importados torna- se as vezes proibitiva pelo alto custo, pela inexistência de mostruário que permita ao cliente experimentar o produto (pois na maioria dos casos, os produtos são apresentados em catálogos), pelo longo prazo requerido para entrega, além dos problemas de manutenção e reposição de pecas. Se for desenvolvida no Brasil legislação que garanta a concessão de uma lista mais completa de ajudas técnicas (por exemplo, o que a ISO 9999 classifica), tanto pelo SUS quanto pelo sistema suplementar de saúde, a indústria nacional assumirá outra postura.
2- Desconhecimento técnico por parte dos profissionais envolvidos na tecnologia de reabilitação: Infelizmente falta treinamento específico para os profissionais de engenharia, design, arquitetura e reabilitação se tornarem desenvolvedores e provedores de tecnologia assistiva. Há ilhas de saber no país que têm formado profissionais de várias áreas em tecnologia de reabilitação, incluindo tecnologia assistiva. Nos últimos anos tem aumentado muito o número de cursos extra-curriculares, em alguns casos curriculares, sobre o tema. Há cursos de pós graduação Strictu e Lato Sensu acerca do assunto. Isso vem possibilitando que mais profissionais estejam capacitados para atender a demanda crescente diante das políticas públicas que têm priorizado a inclusão social.
3. Desconhecimento por parte dos usuários dos seus direitos e também dos produtos disponíveis: A maioria absoluta das pessoas com deficiência e idosos desconhecem os seus direitos assegurados pelos inúmeros instrumentos legais já conquistados (veja no sítio www.assistiva.org.br). A defesa dos direitos individuais e coletivos e uma peca fundamental para a garantia do acesso a TA. Ai a relevância das Promotorias de Defesa das pessoas com Deficiência e Idosos. Alem disso, o fato dos usuários (ou futuros usuários) desconhecerem os produtos disponíveis, contribui para o não uso.
Espera-se que com o que foi relatado até esse ponto leve o leitor a perceber o quanto a área de TA no Brasil esta crescendo. Há um esforço nacional, com atores de todas as áreas, atuando consistentemente, mas de forma ainda insuficiente para atender a demanda dos usuários. O que se percebe porém, é um foco exagerado em produtos ( pesquisa e desenvolvimento), esquecendo-se dos serviços (processos) envolvidos na prescrição de TA, ou seja, quase não se vê pesquisa com desenvolvimento de modelos de assistência . E é justamente esse aspecto que num cenário de escassos recursos o foco deve estar. A garantia de uma prescrição correta é a única alternativa para prevenir o abandono da ajuda técnica, e conseqüentemente o uso inadequado de recursos. Um dos maiores problemas relativos ao uso de tecnologia assistiva é o abandono do dispositivo prescrito trazendo prejuízos funcionais e econômicos para o usuário (PHILLIPS e ZHAO, 1993). O Centro de Engenharia de Reabilitação no Hospital de Reabilitação Nacional em Washington realizou um estudo que discutiu estas questões e concluiu que em algum ponto da vida do usuário de dispositivos tecnológicos eles abandonam estes dispositivos para a aquisição de outros ou porque houve mudança em seu nível funcional ( NARIC - REC, 1991). Nesta mesma pesquisa é sugerido que o processo de prescrição deve ser cauteloso e com a máxima participação do usuário. BATAVIA e HAMMER (1990) descrevem um cenário do abandono de tecnologia particularmente entre os indivíduos que adquiriram incapacidades recentemente. Tipicamente a sequência é o seguinte:
(1) O portador de incapacidades recebem um dispositivo através de um processo de prescrição individual;
(2) estes usuários começam a perceber que os dispositivos não resolvem o seu problema de forma satisfatória;
(3) o uso do dispositivo continua, mesmo que não atendendo todas as necessidades do usuário até ser abandonado, e
(4) os usuários buscam outro dispositivo que satisfazem as necessidades que o antigo dispositivo não satisfazia mas que, frequentemente não satisfará todas as necessidades do usuário.
De todas as ajudas técnicas, os aparelhos para mobilidade tendem a ser os abandonados com mais frequência. PHILLIPS E ZHAO, (1993), identificaram quatro fatores relacionados com este abandono:
(1) perda da importância para o usuário,
(2) fácil obtenção de aparelhos,
(3) mau desempenho do aparelho,
(4) mudanças nas necessidades e/ou prioridades do usuário.
De acordo com estes autores estes achados enfatizam importantes aspectos no processo de seleção, aquisição e uso de aparelhos, e influenciam a satisfação do consumidor com os aparelhos assitivos. É nessa direção que mais pesquisas, legislações, expertise profissional e serviços têm que ser desenvolvidas em nosso país.
*terapeuta ocupacional, Pós Doutora pela University of Flórida em Tecnologia Assistiva, Doutora em Ciências da Reabilitação (ênfase em Tecnologia Assistiva) pela UNIFESP- Escola Paulista de Medicina, Mestre em Ciências – Tecnologia Assistiva, pela University of New York at Buffalo, Especialista em Tecnologia Assistiva pela University of New York at Buffalo; Especialista em “Seating”; Membro do Comitê de Ajudas Técnicas/SNPD /SDH; Professora e Pesquisadora do Instituto de Pós Graduação da Faculdade de Ciências Medicas de Minas Gerais.